Treinador do Flamengo avisa que seguirá carreira solo e comemora apoio dos jogadores: ‘Eles correram por mim e correm até hoje’
Clícia Oliveira, Eduardo Peixoto e Rodrigo Benchimol Rio de Janeiro
O filé mignon mal passado e o arroz foram fáceis de digerir. Duro foi ter que abaixar a cabeça e engolir situações constrangedoras no tempo em que foi auxiliar. Mas Andrade não desistiu do sonho e apostou que um dia teria a oportunidade de mostrar trabalho à frente do Flamengo.
A chance chegou em julho deste ano, com a demissão de Cuca. Desde 2004 na comissão técnica do clube, o ex-jogador novamente imaginou que ficaria por um mandato tampão. Porém, o comando do futebol mudou. A filosofia também. Apostaram na “mística prata da casa” na comissão técnica. Andrade ganhou auxílio de Marcelo Salles e de outros braços formados na Gávea. Dos jogadores tem o respeito e uma certeza: o grupo está com ele. \ - Nossa comissão é muito unida. Até quando um chega chateado a gente percebe. Meu relacionamento com o Andrade no dia a dia é ótimo. O entrosamento é fundamental – disse o auxiliar técnico Marcelo Salles. \ Os resultados assinam embaixo. O Flamengo saiu da parte intermediária da tabela e está à beira do G-4, com 45 pontos. Neste domingo, enfrenta o líder Palmeiras no Palestra Itália. Antes, porém, o treinador encarou o bife sangrando ("o boi está vivo", brincou Andrade) e almoçou com o GLOBOESPORTE.COM, na Zona Sul do Rio de Janeiro.\
No restaurante ao lado estava Carlinhos, campeão brasileiro em 1987 e 1992 pelo Rubro-Negro, e um exemplo para Andrade. Tanto que ele revela que, daqui para frente, não voltará mais ao cargo de auxiliar.
GLOBOESPORTE.COM: Dá para fazer um minibalanço de julho para cá?\ Andrade: São dois meses e meio, mas parece que tem um ano. Muita coisa aconteceu neste curto espaço de tempo (risos). Tivemos um início muito bom, depois surgiram problemas de contusões e cartões, e veio a turbulência. Tivemos três derrotas seguidas, passei a ser questionado e contestado. Uns começaram a dizer que eu não estava pronto, que foi precipitado me efetivar. Foi difícil, mas consegui passar por isso. \ Quais fatores contribuíram para aguentar o período das derrotas?\
Desde o momento em que chegaram o Álvaro e o Maldonado, e o Léo Moura voltou, conseguimos dar a volta por cima. Talvez se não fosse o Marcos Braz (vice de futebol) eu não estaria aqui. Ele teve paciência e acreditou no meu trabalho. De repente, se fosse outra pessoa teria contratado um treinador, e eu estaria novamente como assistente técnico. \ Você aceita voltar a ser auxiliar técnico do Flamengo? \
Acho que agora tenho que seguir minha carreira solo. Voltar a ser auxiliar seria dar um passo atrás e preciso olhar para frente. Provei o que tinha que provar, então, acho que seria muito difícil retornar. \ Mas em 2004, depois de ser efetivado, você acabou substituído pelo Júlio César Leal e retornou à função de auxiliar. Por quê?\ Eu tinha um grupo que não estava fechado comigo. Isso é o primordial. Os jogadores têm que acreditar naquilo que você fala e tem que haver uma troca de confiança. E aquele grupo eu sentia que não estava fechado e dificilmente daria certo. Era a hora de dar um passo atrás para hoje chegar onde estou. \ E o elenco agora é diferente?\ Totalmente diferente. O grupo me aceitou, aos pouquinhos fui transmitindo confiança para eles. Houve uma reciprocidade. Eu confio neles, e eles confiam em mim. Ficou mais fácil trabalhar. Eles me deram o tempo que eu precisava e isso foi fundamental para dar certo. \ Para ser técnico é necessário ter a simpatia das lideranças? \
Se você tiver apoio dos líderes a coisa vai fluir naturalmente. Mesmo no momento delicado não fui questionado pela diretoria e pelos jogadores, e os resultados apareceram. Pegamos o time em 11º e estamos em sexto, a um passo do G-4. Claro que falta muito. \ Como foi receber a notícia de que novamente seria interino no Flamengo?\ Primeiro que eu não esperava assumir. O treinador era o Cuca, e ele estava fortalecido pelo Kleber Leite (ex vice de futebol). Mas houve a mudança e falaram que eu dirigiria contra o time contra o Santos. Mas sabia que procuravam outra pessoa. Só que teve a saída do Kleber. Vencemos na Vila, quebramos o tabu e chegou o Marcos Braz. Desde que assumi percebi que o grupo estava fechado e queria que eu fosse efetivado. Eles correram por mim e correm até hoje" \
E o novo vice acreditou em você?\ Ele falou que eu ficaria contra o Atlético-MG e completou: “Você não vai fazer só osso, vou te dar um filé também”. Ele se referia ao jogo contra o Náutico. Aí você vê como a vida é engraçada. Justamente no filé demos a engasgada (empate por 1 a 1) e contra o Atlético, que era líder, vencemos. \
Recentemente, o vice-presidente Delair Dumbrock exaltou a comissão técnica prata da casa. Até que ponto essa característica é importante?
Levamos a vantagem por conhecer todo o clube. Conhecemos o pessoal da marcenaria, da piscina, do bar... E quem vem de fora leva um tempo para se habituar. Sabíamos a personalidade de cada jogador e corria-se esse risco de um treinador de fora demorar para se adaptar. Sabíamos o que o grupo precisava. E a coisa deu certo. Formou-se um casamento entre a comissão técnica e os jogadores.
Mas desde 2004 ocorreram alguns momentos em que você não esteve feliz na Gávea...
Isso faz parte do dia a dia. Tive alguns episódios constrangedores, mas na vida é necessário enfrentar isso. Os obstáculos por que passei todo mundo enfrenta. Às vezes eu pensava: não precisava passar por isso. Ouvi algumas coisas que, pela história no Flamengo, me fizeram sentir desrespeitado. Mas aguentei, aturei para poder chegar aqui.
Faz parte engolir sapo?
Faz, e como faz parte... Chega um momento que perguntei: o que estou fazendo aqui? Mas fiquei. Acreditei, persisti e pela perseverança pude demonstrar meu valor.
Um destes episódios em que sentiu desrespeitado foi durante o clássico contra o Fluminense Taça Guanabara de 2005. O que aconteceu?
Foi uma situação chata. O Cuca chegou como treinador, poderia ter assumido e disse que não queria. Ele não foi nem na preleção, embora eu o tenha deixado à vontade. Mas fomos para o jogo, que não valia muita coisa, só a parte moral. No intervalo, o Anderson Barros desceu junto com o Cuca e falou: “Ele vai assumir”. Só que àquela altura eu já havia realizado as substituições. Imagina a situação que fiquei? Tive que voltar atrás. Foi constrangedor para mim. De repente ele não percebeu.
Você ainda teve cabeça para retornar para o segundo tempo?
Fiquei muito chateado e por pouco não saí e fui embora. Só não fiz isso porque ficaria sem treinador à beira do campo. Eu tinha assinado a súmula. Quando o jogo acabou, o Cuca foi para a sala de coletiva e fui embora. Não tinha mais nada para fazer ali.
E aí?
Encontrei o Anderson Barros fora do Maracanã e ele me questionou: “Estava todo mundo te procurando para dar entrevista” . Respondi: “Não tenho nada para fazer na sala de imprensa”. Mas superei essas situações porque não sou uma pessoa rancorosa. Não guardo mágoa de ninguém. Estou contando porque me chateou e chatearia qualquer profissional. Foi algo desnecessário.
No período em que foi auxiliar, você conviveu com vários treinadores. O que soube filtrar de cada um deles?
Tive aprendizado com vários treinadores. Abel, Celso Roth, Ney Franco, PC Gusmão, Ricardo Gomes, Joel Santana... peguei um pouco de cada um. A tranquilidade do Ney Franco, a parte disciplinar o Celso Roth, o jeitão do Abelão e maneira extrovertida do Joel para lidar com o grupo. Cada um ensina uma coisa.
Logo na sua estreia, contra o Santos, sentia-se um espírito pró-Andrade no time. Quando o Adriano empatou o jogo, todos foram correndo abraçar você. Houve algum pacto?
Desde que assumi percebi que o grupo estava fechado e queria que eu fosse efetivado. Eles correram por mim e correm até hoje. Não só por mim, mas pelo Marcelo (Salles, auxiliar) e toda a comissão. Eles sabem que se a gente não der certo pode chegar outro profissional e de repente não haver aquela química.
As lágrimas no fim do jogo também marcaram muito.
E o choro nem foi pelo jogo em si, mas pela morte de um companheiro, o (ex-goleiro) Zé Carlos (vítima de câncer). O jogo era menos importante comparado à morte de um amigo.
Desde 2006, o Flamengo estava acostumado a um esquema tático que privilegiava os alas e recheava o meio campo com volantes. Porém, há algumas rodadas você modificou totalmente o esquema e passou a atuar com dois meias ofensivos e dois atacantes. Por que a mudança radical?
O primeiro jogo em que eu faria isso seria contra o Fluminense, na Copa Sul-Americana. Era um esquema ofensivo, ousado. Cheguei a pensar, mas dei uma segurada. Só que depois do empate por 0 a 0 com o Atlético-PR, em Curitiba, quando não demos nenhum chute, percebi que era hora de mudar. No jogo contra o Santo André deu certo e mantivemos. Contra o Inter, mesmo debaixo de chuva, o time jogou bem e amadureci a ideia: essa é a forma de jogar dentro e fora de casa. Agora não tem como mudar.
Nas últimas partidas a torcida novamente compareceu ao Maracanã e apoiou do início ao fim. É um dos trunfos do Flamengo na reta final?
A química entre torcedores e jogadores foi fundamental. Buscávamos isso há um tempo, mas não conseguíamos. Trabalhamos isso na cabeça do grupo e veio na hora certa. Estamos há oito jogos sem perder e esperamos manter essa regularidade. Sabemos que é o Palmeiras, mas temos tudo para manter essa invencibilidade.
No fim deste ano tem eleição. Qual o futuro do Andrade em 2010?
Queria chegar à Libertadores e disputá-la pelo Flamengo. Iria enriquecer muito meu currículo.